O cinema nacional chegava em seu ápice e a arte ressoava aos ouvidos e olhos daqueles que escutavam e assistiam a obra de Walter Salles. Lembro-me da sensação quando o filme chegou ao seu final arrebatador, quem dera me restasse glândulas lacrimais naqueles últimos segundos. Extraviado de firmeza emocional, logo notei que aquilo se tratava de uma parede, uma divisória entre o antigo e o novo mundo cinematográfico brasileiro.
Central do Brasil (1998), conseguiu transbordar todas as expectativas de seu público, fato que logo lhe rendeu duas indicações ao Oscar, de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz para Fernanda Montenegro. Não seria a primeira vez que um filme brasileiro estrelava na premiação, entretanto, sem dúvidas fora uma das mais aguardadas. Mas o que fazia esta obra ser tão importante para a história do cinema?
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
Cartas para quem?
Já no prólogo, somos expostos à rotina da ex-professora e amargurada Dora, protagonista interpretada por Fernanda Montenegro. Dora vive seus dias no caloroso Rio de Janeiro, escrevendo cartas em nome de pessoas que não sabem nem ler e nem escrever, mas que buscam contato com seu familiares e amigos – deve-se lembrar que o filme se passa em 1998, quando a tecnologia ainda era pouca e exclusiva.
Minuciosamente, somos inseridos no universo da mulher. A simplicidade iminente dela e de personagens que aparecem ao longo da trama, vai se tornando parte de uma grande orquestra de envolvimento entre espectador e obra – o que logo transmite uma sensação de importância, diante da qual cada um dos personagens ali presentes, será altamente necessário para o desenrolar da história.
Após nos situarmos na realidade da obra, a grande reviravolta acontece. Somos brevemente retirados de nosso conforto habitual e impactados pela dor da morte – inesperada para quem assiste pela primeira vez – sentimento este que fora representado por Josué (Vinícius de Oliveira) de maneira incrivelmente realista.
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
O sofrimento acaba por deixar sua primeira marca, seguido pela preocupação e pela incerteza sobre qual o rumo da história do garoto tomará. Batendo de frente com a realidade crua do final do século passado – não que hoje fosse tão diferente – nos deparamos com linhas tortas e cruciais de miséria onde a criança acaba se inserindo. A esperança de salvação torna-se, a cada minuto, mais distante e sua única representação física acaba sendo subjetivamente despejada sobre Dora. Não basta muito para que a mulher, movida pelas suas dúvidas e outras adversidades, decida por fim levar Josué até seu suposto pai, morador no sertão do Nordeste.
Dor interminável através das lentes
O caminho se torna áspero quando as situações desagradáveis acabam por se tornarem rotineiras: desde a impossibilidade financeira para continuar a viagem até as dificuldades mútuas entre os dois protagonistas. A fotografia permite expor toda a dura realidade de maneira emocionalmente arrebatadora.
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
Em determinados momentos da trama, fica evidente a analogia com o descobrimento pessoal de Dora. Curiosamente, o fato da mulher ser muito mais velha acaba sendo jogado fora quando notamos que a escritora de cartas, acabou recebendo o maior aprendizado através da viagem, algo que jamais poderia ter vivenciado durante todos os seus anos anteriores. No fim, ambos – Josué e Dora, pouco a pouco, abandonam a ideia de serem pesos na vida um do outro e adotam uma relação de carinho e cuidado mútuo.
Em uma das cenas que vale a pena ressaltar, observamos por metáforas a irônica falta de experiência que coexiste com sua firmeza quase inquebrável que parece desaparecer neste momento.
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
Numa visão particular, no momento em que a breve “paixão” de Dora foge, deixando ela e Josué jogados a esmo, a fotografia nos permite observar um deslumbre dos sentimentos que a mesma escondera por toda a sua vida. A janela em frente ao seu rosto representa uma espécie de “barreira emocional”, a mesma que a acompanhou durante toda sua existência. Por trás disso, entre lágrimas, a mulher se encontra reclusa em seu individualismo tão sofrido. A sensação repetitiva de outra experiência que dera errado, fato deixado bem claro por ela através de suas histórias passadas.
Retratados de maneira árida e crua, todos cenários buscam trabalhar com simplicidade, sendo completamente fiel à realidade do povo sertanejo. Em uma das melhores cenas do cinema nacional, quando a mulher e a criança se encontram na tão esperada cidade de Bom Jesus do Norte, sem dinheiro ou esperanças, a ideia de exercer o seu trabalho novamente ressurge. Com o auxílio de pequena mesa, dois bancos, caneta e papel, Dora inicia aquela que seria uma das cenas mais reais e emocionantes quando volta a escrever cartas como uma fonte de renda, entretanto, em um nova locação, como uma nova espécie de Central do Brasil, porém com mais dores armazenadas.
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
A veracidade nos olhares e nas palavras de cada sertanejo que vem sentar naquele banquinho nos permite perceber quão sofrida é a vida dos que ali existem, e ao mesmo tempo, quão gratos por suas vidas eles são. Através de agradecimentos, mensagens de amor e carinho para familiares, os sorrisos largos ou olhares marejados transpassados para a carta são mais do que apenas letras num papel, se tornam verdadeiras obras baseadas em fatos.
A vastidão exibida através das câmeras permite uma fotografia com planos longos e amarelados que dão ideia de altas temperaturas. O horizonte seco e ao mesmo tempo lindo, fazem os olhos dos que assistem brilharem de paixão. Os artifícios foram perfeitamente usados pela produção, nos transmitindo o sentimento de solidão em algumas vezes ou de felicidade, quando necessário.
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
Brasil
Fazendo jus à realidade de nosso país, o longa se mantém verossímil durante toda sua minutagem. A tarefa de segurar as lágrimas acaba sendo quase impossível em vários momentos do filme. Todavia, a sensação de paz e gratidão transmitida pelos protagonistas ao seu epílogo nos causa um bem-estar inexplicável de maneira que resta apenas aceitar que aquilo fora o melhor a ser feito.
(Imagem: Captura de tela/Lucas Cavalcanti)
O que seria Central do Brasil se não um dos filmes mais importantes para a nossa história? Um filme que atravessa gerações e sempre atravessará. Atemporal e necessário, no filme somos expostos ao amor, à gratidão, à simplicidade e à outras várias virtudes presentes na trama, tudo embrulhado em 110 minutos, os minutos mais deslumbrantes que poderíamos ver em uma tela.