Os Oito Odiados | #TBT

Direção: Quentin Tarantino (2015)

Do original, The Hateful 8 – o sentido mais apropriado seria “Os Oito Odiáveis” – é o oitavo filme de Tarantino: um Western, ou também conhecido como “bangue – bangue”, que se passa cerca de dez anos após a Guerra de Secessão estadunidense; no filme, acompanhamos a estória de oito refugiados que se abrigam em uma espécie de cabana-posto de carruagens, durante uma tempestade de neve. O enredo escala em violência e tensão de maneira bastante rápida, pois “quis o destino” enclausurar, sob o mesmo teto, inimigos históricos comuns: temos oficiais escravocratas, negros alforriados, caçadores de recompensas e mulheres (também historicamente marginalizadas no contexto americano). O filme nos revela, portanto, um vislumbre do trauma histórico que viria a fundar os Estados Unidos do século XX e que persiste até os dias de hoje, evidente nos conflitos raciais e de imigrantes.

Antes de mais nada, é preciso ressaltar que a fotografia e a trilha sonora estão deslumbrantes – não à toa a trilha sonora impecável e imersiva, composta por Ennio Morricone arrebatou três prêmios em 2016: BAFTA, Globo de Ouro e a estatueta do Oscar. Isso tudo somado a um roteiro original, dividido em seis atos, escrito por um diretor “nerd” em cinema, com bons elementos de tensão, diálogos afiados e violência estilizada fazem de Os Oito Odiados um filme caprichado, que homenageia o western americano, mas que também é capaz de apontar críticas atuais bastante relevantes.

O filme é dividido em seis capítulos – ou seis atos – e se passa quase que totalmente dentro de uma cabana, de modo que temos a impressão de estar diante de uma peça. A cabana alude ao próprio espaço dos Estados Unidos dividido e o motor da narrativa são os conflitos históricos dessa nação pós-guerra; a “isca” do filme, que chama a atenção para a estória, é o percurso do caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell), que está levando, algemado a si, a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), para ser enforcada em Red Rock. Com suas quase três horas de duração, os diálogos estão tão bem amarrados e as performances tão hipnotizantes que, apesar da duração e do espaço limitado, a estória parece passar muito rápida.

É verdade que Quentin Tarantino não é exatamente um diretor original ou inovador, mas realiza um trabalho muito competente ao homenagear o cinema. Antes de mais nada, vale a pergunta: “Mas, a final de contas, o que é um Western?” – Trata-se de um gênero popularizado pelo cinema norte-americano, na metade do século XX, em que temos o retrato de regiões violentas, geralmente relacionadas ao conflito da expansão estadunidense para as terras do Oeste. O fato é que um filme de “velho-oeste” busca representar uma terra onde as leis da civilização parecem estar em suspensão: não à toa, é comum o largo uso da expressão “terra sem lei” quando pensamos nesses espaços; trata-se de um estado primitivo da experiência histórica americana em que,  na ausência da civilidade moderna do Estado, os sujeitos agiriam a partir de regras próprias, quase sempre feitas a muito bang-bang.

O que torna Os Oito Odiados um filme muito interessante é que ele é capaz de explorar as tensões de um período histórico que persiste até hoje: em linhas gerais, a Guerra de Secessão separou o Norte industrial, mais progressista e antiescravagista do Sul americano, latifundiário e escravocrata. A guerra termina com a vitória do Norte, contabilizando milhares de mortos, escravos alforriados e supremacistas brancos ressentidos, historicamente ligados ao latifúndio e ao Sul. No filme, oito pessoas são colocadas dentro de uma casa, que fica literalmente dividida ao meio – as personagens dividem o espaço da cabana, para evitar conflito; aqui, já temos uma alegoria histórica: diversos historiadores referem à “casa dividida” quando comentam a guerra – o Norte ficara conhecido como os estados da União e o Sul os estados Confederados.

Uma história mal resolvida

O filme possui vários aspectos que valem destaque, mas quero focar somente sobre a relação de liberdade que a população escrava negra afro-americana possui nesta nação pós-guerra, afinal essa é uma das contradições mais interessantes que o filme explora e, para isso, vale destacar a relação entre os personagens – e atores – mais interessantes de Os Oito Odiados: o Major negro e agora caçador de recompensas Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e O xerife Chris Mannix (Walton Goggins), confederado pró-escravagista – é difícil tirar os olhos da dela, com o poder hipnótico deles.

Marquis Warren diz ter uma carta escrita pelo próprio Abraham Lincoln em sua posse e afirma ter trocado cartas com o presidente por anos, o que implicaria em uma relação de amizade. Ora, Lincoln foi o grande presidente do período da Guerra de Secessão, conhecido por ter acordado o fim da guerra e negociado um projeto abolicionista nos EUA, a partir da vitória dos estados do Norte e, por conta disso, prematuramente assassinado. E é justamente aí que a coisa fica interessante: O xerife Chris Mannix implica com a situação e constantemente indaga se as pessoas realmente acreditam que um homem negro como Warren seria realmente capaz de ter possuído uma relação pessoal de amizade com o presidente dos Estados Unidos.

Enquanto muitos americanos enxergam em Lincoln um presidente modelo e uma figura heroica, por ser capaz de unir o país no período da Guerra e abolir oficialmente o sistema escravocrata, há os historiadores que notam o caráter ambíguo do momento histórico do presidente. É inquestionável como Lincoln possuía habilidade diplomática invejável, mas o fato é que historiadores americanos revelam que o presidente era mais diplomata que abolicionista. Enquanto os Estados Unidos contava com congressistas declaradamente antiescravidão, Lincoln parece ter conseguido assinar o acordo de paz entre o norte e o sul mais por conveniência econômica – já que o monopólio das indústrias americanas se tornavam um grande atrativo para a corrida econômica no séc. XIX -, que por ser um entusiasta da causa abolicionista. Existem documentos históricos que demonstram ambiguidades no manejo político de Lincoln quanto sua real disposição de libertar escravos. O fim da guerra aconteceu, mas, a despeito do idealismo histórico da figura do presidente, essa conciliação parece ter se dado mais por conveniência política que outra coisa.

E aí, voltamos à carta – o filme põe em xeque a autenticidade da carta e aponta para essa ambiguidade histórica; é fato que o Major Warren é, então, um homem livre, mas existe muita dúvida sobre ele ser realmente amigo de Lincoln, sobre um combatente negro possuir uma relação de amizade genuína com o presidente. Essa “estória” mal resolvida aprece como uma constante no filme na medida em que, conforme o filme se desenrola, o espectador continua sempre em dúvida se estamos diante de uma carta autêntica ou forjada – em última análise, se estamos diante de uma relação autêntica entre o presidente e a população negra, ou se estamos diante de uma relação forjada para atender demandas econômicas.

Esse aspecto do filme se torna mais evidente se considerarmos o fato de que o tratado do fim da Guerra foi incapaz de trazer leis e políticas efetivas de reintegração da população escarava dentro do país; do ponto de vista prático, a “casa dividida” jamais fora reconciliada totalmente. Não à toa as leis de segregação racial americana durariam até o século XX e, ainda hoje, o “grande país da democracia e liberdade” está afogado em conflitos raciais e se vê incapaz de livrar-se desse trauma histórico. Logo no início do filme Marquis Warren pergunta, para entrar na carruagem: “Got room for one more?” – algo como “Tem espaço para mais um?”. Ora, estamos diante de uma indagação emblemática, feita por um negro buscando seu espaço nessa nova américa que se configura e jamais se preparou para reparar sua dívida histórica com a escravidão.

Os Oito Odiados é, portanto, um dos filmes mais maduros de Tarantino e se apresenta como um prato cheio para amantes de Western, recheado de bons diálogos e alegorias históricas de todo o caldo histórico que viria fundar os Estados Unidos do século XX, regado à sangue, violência e contradições históricas. Em suma, um ótimo filme para quem gosta de cinema e está atento para compreender mais da história americana.

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