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O Terror no cinema americano dos anos 2020 e o corpo negro em foco

Por Gustavo Vieira

A década passada nos presenteou com uma obra de terror intrigante e que rapidamente caiu no gosto da crítica e da cultura pop; foi para o Oscar, recebeu premiações e trouxe grande notoriedade para o diretor Jordan Peele. Trata-se de Corra! (Get Out, do inglês), um terror psicológico lançado em 2017 que aborda a temática do racismo de maneira afiada, a partir da perspectiva de um jovem negro. Para a gente pensar o filme e estabelecer um norte para o caminho que proponho nesse ensaio, quero formular a pergunta: O que Jordan Peele tem a nos dizer sobre as tensões raciais estadunidenses e a objetificação do corpo negro? – deixemos essa questão como bússola para guiar a reflexão das próximas páginas.

De antemão preciso avisar que, por se tratar de um artigo ensaio, pode haver spoilers! Então, se ainda não viu essa belezura, pare o ensaio e vá assistir! – Ou se não, se liga nas reflexões que a gente pode tirar do filme, e aproveita esse texto pra ficar com o gostinho de assistir à Corra! – Vamos discutir um filme muito interessante e não tem spoiler que possa estragar sua experiência de rever e rever o filme.

Vamos à estória: temos como protagonista o rapaz negro, Chris Washington (Daniel Kaluuya) – que, diga-se de passagem, nos presenteia com uma atuação de tirar o fôlego -, e sua namorada branca Rose Armitage (Allison Williams); a princípio estamos diante de um casal interracial apaixonado, feliz e sem conflitos aparentes; Chris é um talentoso fotógrafo e Rose é apresentada inicialmente como uma gentil jovem, filha de pais ricos. Num dado final de semana o casal decide ir à casa dos pais da moça para que Chris possa conhecer os futuros sogros.

A preocupação inicial de Chris – a de ser um jovem negro namorando uma moça branca, adentrando no espaço de uma família branca rica americana – parece infundada a princípio, ainda mais com o discurso sempre progressista da namorada carismática. O problema é que essa “pulga atrás da orelha” de Chris se revela mais do que justificada quando ele percebe estar entrando em uma espécie de culto cientificista moderno, que alicia pessoas negras, as hipnotiza, as vende em leilão e nelas realiza cirurgias cerebrais semelhantes à lobotomia para que, dessa forma, possam servir a brancos ricos de maneiras inimagináveis.

Ao chegar na casa, Chris é recebido pelo então carismático casal branco Missy (Catherine Keener) e Dean Armitage (Bradley Whitford), que se mostra muito receptivo ao novo namorado da filha. O desconforto começa quando o pai da filha se revela como um figurão que insiste em exibir sua visão aparentemente progressista, elogiando Obama exaustivamente, utilizando gírias próprias da comunidade afro-americana ao se referir a Chris com um “my man” – vocativo muito próprio de uma linguagem descolada da realidade branca rica dos Armitage. Além disso, mais duas figuras aparecem como elemento de estranhamento na casa: dois empregados negros de comportamentos atípicos.

Com o desenrolar da trama, convidados brancos chegam à casa e passam a fazer elogios, perguntas e comentários constrangedores em relação à Chris, tais como “como é ser um afro-americano nos tempos atuais?” ou como “é verdade que o pau é maior?”, ou ainda “com sua carga genética e treino, serias um monstro no MMA” – este último comentário feito pelo próprio irmão da namorada, Jeremy Armitage (Caleb Landry Jones).

A tensão escala muito rapidamente ao cair da noite, Chris é hipnotizado pela matriarca e, quando se dá conta, Chris precisa lutar pela sua vida, pois fora vendido à um branco cego e será submetido a uma cirurgia experimental na qual cederá o próprio corpo ao comprador. Aqui, o racismo revela sua face a partir de uma aparente admiração dos brancos pelos afro-americanos, que obviamente nada mais é que uma forma de objetificação sobre o corpo negro, trata-se de uma das possibilidades de reprodução da lógica escravista americana.

É verdade que não faltam exemplos de excelentes filmes que lidam com a questão racial americana: filmes sobre a violência policial, filmes sobre a guerra de Secessão, os levantes dos movimentos sociais da década de 1960, as histórias antibelicistas, segregacionistas etc. Tendo isso em vista, é válido pensar o que, afinal de contas, alça Get Out como obra de interesse para a geração de hoje em dia. Para além das últimas décadas, com notáveis diretores como Spike Lee, Steve McQueen, Berry Jenkins e tantos outros interessantíssimos, a obra de Jordan Peele decide arriscar na forma e extrapolar os limites do tema. Quanto à forma, a aposta é o gênero do terror – que encontra muito apelo na última década do cinema americano -, quanto ao tema, é válido notar que o filme é didático em demonstrar não somente o racismo, mas também o apagamento, a objetificação e o fetiche sobre o corpo negro. Não – não estamos necessariamente diante de algo inovador, mas certamente Peele consegue trazer um frescor ao tema para um público de nossa geração atual sem lançar mão de fórmulas batidas. É óbvio que a questão racial é recorrente em muitas obras relevantes, mas infelizmente também ainda muito necessária.

Se por um lado temos uma elite branca ressentida que descobre uma nova forma de escravizar e dominar o corpo negro, por outro lado temos o indivíduo negro sendo completamente destituído de sua subjetividade e se tornando meramente um autômato para servir aos seus compradores – chamemos, aqui, pelo nome que merecem: escravocratas esclarecidos. Nesse sentindo, o filme sugere um grau de violência talvez ainda mais traumático que o já vivido historicamente por afro-americanos – como se a “branquitude” não pudesse inventar formas mais cruéis de justificar sua violência e controle racial –, trata-se do “embranquecimento” do corpo negro! Como uma espécie de eugenia moderna, ao serem submetidos à hipnose e à cirurgia que lhes rouba a autonomia e subverte a própria subjetividade, esses sujeitos são, em última instância, “colonizados de dentro pra fora”.

Para que fique mais clara a gravidade do tema que a forma do terror pôde explorar é só prestarmos atenção em todos os sujeitos negros que cederam o próprio corpo para mentes brancas: Chris percebe um distanciamento da linguagem e do comportamento dos “negros convertidos” em relação a si mesmo. É um desafio enorme procurar emular isso na legendagem ou mesmo na dublagem, mas o vocabulário utilizado pelos que sofreram a lavagem cerebral é embaraçosamente “embranquecido”; não somente isso, mas a postura corporal de todos: o jardineiro Walter (Marcus Henderson) mantém um sorriso amarelado, típico de um senhor branco de idade, cheio de bordões próprios à elite branca; Georgina (Betty Gabriel) anda, fala e se porta com a rigidez robótica constrangedora que somente o costume branco, rico e conservador seria capaz de produzir; além disso temos Logan King (Lakeith Stanfield), um rapaz negro tão absurdamente esquisito – com suas roupas, gestos, prosódia, registro vocabular -, que incomoda Chris nos poucos momentos de interação com o protagonista.

É preciso deixar claro que essas ditas diferenças culturais entre essa elite branca e as personagens negras não cai em nenhum estereótipo racial forçado e nem tem como objetivo desqualificar a linguagem própria afro-americana. Não à toa, Jordan Peele, um diretor negro, é quem joga com o maior cuidado possível esses contrastes evidentes; as diferenças ditas culturais – se aqui assumirmos o sentido não só de visão de mundo, mas também de comportamentos e linguagem – estão no filme meramente para evidenciar o horror da situação. Se existe algo claramente estranho e anormal é a linguagem desprezível da ideologia branca, sobretudo na boca dos corpos negros.

Portanto, a alegoria que o diretor cria a partir da fatalidade do procedimento é a de se produzir pessoas afro-americanas destituídas da própria individualidade, possuídas por demônios brancos – aí está o horror! A pretensa admiração pelo corpo negro, por uma “carga genética superior” – expressão entre aspas justamente por ser extremamente problemática e por ser citada por um dos personagens – nada mais é do que uma ideologia racista que revela seu lado mais cruel à medida em que busca normatizar o sujeito negro aos moldes de comportamentos historicamente relacionados a uma “branquitude” de elite.

De novo, esse contraste cultural explorado por Peele não tem como objetivo retratar “diferenças inatas entre raças” – não! Essa seria uma visão muito reducionista! – mas, tem como objetivo o de provocar a reflexão de como o violento processo histórico cultural americano é o verdadeiro responsável em aprisionar corpos negros e “racializar” os que são oprimidos e que assim foram “racializados” devido ao horror do sistema escravocrata. Não podemos perder de vista a eloquente imagem que o filme nos traz do casarão no interior dos Estados Unidos, onde a família se reúne para leiloar o protagonista. Ora, essa imagem evoca um óbvio paralelismo ao sistema mercantil da escravidão, quando os latifundiários negociavam escravos.

Corra! surge como um filme de terror para demonstrar, a partir da ótica do indivíduo negro, quem são os verdadeiros “demônios” e “fantasmas” – insisto nesses termos por se tratar do gênero de terror – da história: a elite branca ressentida que, através de um pretenso discurso progressista, age de maneira a promover a manutenção do status quo escravocrata: usando todo o poder que dispõe para continuar a controlar e oprimir o indivíduo negro.

A força do filme está justamente na capacidade de apontar as contradições do discurso conciliador dessa classe branca, que admira o Obama, que enxerga no corpo negro uma suposta superioridade física e que sorri diante da ideia pacificadora da convivência entre brancos e negros na américa, mas que no fundo jamais foi capaz de superar efetivamente a mentalidade escravocrata. O verdadeiro terror do filme é observarmos como todo o discurso tido como progressista, orgulhosamente proclamado pelos senhores brancos, nada mais é do que perfumaria para arrefecer as tensões históricas, nada mais é do que estratagema para cooptar os ideais libertários dos discursos das minorias e usá-los contra elas.

O filme nos chama atenção para estar sempre de olho nas pistas históricas e nas contradições políticas de nosso tempo, assim como nos discursos tidos como progressistas, afinal não é à toa que Barack Obama é repetidamente citado no filme: é inegável a força simbólica do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, mas que do ponto de vista político e prático pareceu ter pouca força para mudar estruturas históricas realmente significativas – como exemplo a incapacidade de implementar um sistema único e gratuito de saúde na “grande nação do pioneirismo democrático”.

Não cabe ao presente artigo entrar nos pormenores políticos da era Obama, nem pretendo, com isso, desqualifica-lo, mas é preciso sempre lembrar que se a América teve Obama, ela também teve George Floyd e que não conseguiu ainda superar suas violências institucionais, seja na polícia, na política e na falta de um sistema mais igualitário e justo que ainda afeta majoritariamente a população negra americana. Corra! serve para nos lembrar o terror que é estar em pleno século XXI e ainda testemunhar os autointitulados grupos de supremacia branca sair às ruas para violentar negros, latinos e outras minorias ideológicas já tão historicamente oprimidas.

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