Uma noite de ancestralidade e poesia sonora que iluminou São Paulo
Por tOn Miranda
Na noite de 14 de setembro de 2024, o SESC Consolação foi o cenário de um evento que ficará marcado na memória de quem teve a sorte de presenciar: a estreia do novo show de Zé Manoel, baseado em seu mais novo álbum Coral. Ao entrar na sala, a plateia foi envolvida por uma expectativa silenciosa, enquanto o palco aguardava escondido por pesadas cortinas, como um segredo prestes a ser revelado. As luzes, cuidadosamente desenhadas por Laiza Menegassi e Pâmola Cidrak, criavam uma atmosfera quase onírica, antecipando o que viria.
Quando as cortinas lentamente se abriram ao som da canção “Golden”, o público foi instantaneamente transportado para um universo solar. O calor da faixa parecia abraçar a todos, enquanto a banda de Zé Manoel – composta por guitarra, baixo, bateria, duas percussionistas que também faziam os vocais de apoio e dois músicos nos sopros – preenchia o ambiente com uma musicalidade luminosa. O piano de Zé, sempre o fio condutor de suas narrativas, conduzia suavemente cada acorde, criando uma sensação de acolhimento imediato.
O Repertório: Um Encontro entre Afeto e Ancestralidade
Após a abertura com “Golden”, o show seguiu com “Canção de Amor Para Johnny Alf”, uma homenagem elegante e cheia de reverência ao mestre da bossa nova. Os arranjos sutis e envolventes da guitarra, combinados com as linhas delicadas do piano de Zé Manoel, trouxeram um toque nostálgico, e o público parecia suspirar junto com a melodia.
“Iyá Mesan” chegou logo depois, evocando uma profunda conexão espiritual. As percussões fortes e as vozes das percussionistas ampliaram o poder dessa canção, que reverberava como uma saudação às entidades ancestrais africanas. A luz que banhava o palco durante a canção, amplificava o misticismo e a espiritualidade que tomavam conta da sala. Nesta canção Zé Manoel deixou seu piano preto e foi ao centro do palco, cantar e dançar a canção que nos convida a essa gira poética.
A energia tomou conta com “Menina Preta de Cocar”, uma celebração à mulher afro-indígena, cuja pulsação rítmica envolveu todos os presentes. O público reagia com entusiasmo, enquanto a fusão dos elementos percussivos e os arranjos ousados de guitarra criavam um clima festivo e cheio de vigor. Zé continuava solto no centro do palco, interpretando a canção que é o primeiro single do álbum Coral.
Com Zé Manoel de volta ao seu piano em “Malaika”, a suavidade voltou a dominar o espaço. A canção, um clássico africano, foi tratada com respeito e sutileza, enquanto Zé Manoel e sua banda entregavam uma performance emotiva e intimista, reverberando a conexão entre Brasil e África. A troca de olhares entre Zé e sua banda revelava a sintonia e a entrega de cada músico no palco.
Quando a faixa-título “Coral” começou, o público foi mais uma vez transportado, dessa vez para as profundezas dos mares e das raízes brasileiras. As luzes avermelhadas criaram um cenário que evocava a imensidão dos corais oceânicos, e o piano de Zé desenhava as ondas que embalavam a plateia.
Luzes e Emoções: A Magia de Laiza Menegassi, Pâmola Cidrak e da Produção
A direção de luz de Laiza Menegassi e Pâmola Cidrak foi um dos elementos mais marcantes da noite. As cores e os focos de luz foram desenhados com tanta precisão que pareciam corresponder ao movimento da música. Em faixas como “Above the Sky”, a iluminação aérea e das ribaltas refletia o desejo de transcendência, enquanto em “História Antiga”, a luz quase minimalista acentuava a intimidade da narrativa. Aliás, se existe um único pedido deste autor para o artista é que cante a canção “História Antiga” por completo. Ela é linda e necessária, para ser somente citada.
A produção da 78 Rotações com o talento de Laercio Costa e sua equipe também merecem destaque. A qualidade sonora e a organização do espetáculo evidenciavam o cuidado com cada detalhe. Nada foi deixado ao acaso, desde a escolha dos músicos até a construção do repertório, tudo dialogava perfeitamente, proporcionando uma experiência sensorial completa.
Medleys, Citações e Sutilezas Poéticas
Um dos momentos mais poderosos foi o medley “Notre Histoire” e “Escuta Beatriz Nascimento”. As canções se entrelaçaram em uma narrativa sobre memória, resistência e história, que foi profundamente tocante. A profundidade lírica, somada à interpretação sensível de Zé Manoel, fez desse momento um dos pontos altos do show, com a plateia em um silêncio reverente.
“Pra Iluminar o Rolê” trouxe leveza e alegria, com a banda e o público interagindo em uma vibração mais descontraída, enquanto “Não Negue Ternura” foi um lembrete afetuoso de que o amor e a gentileza podem ser formas de resistência.
O medley “Canção e Silêncio” com “Bye Bye Tristeza” foi outro instante de encantamento. A delicadeza com que Zé Manoel tratou essas duas faixas, uma em diálogo com a outra, foi hipnotizante. Eu sempre brinco que quando Zé canta Canção e Silêncio, é o momento de catarse da plateia que se identifica com a dor de um grande amor mal resolvido. A junção com o hit da grande Sandra de Sá, fez coro e levou a plateia ao total delírio. E, ao chegar em “Caçamba”, a energia no palco explodiu, levando o público a dançar em seus assentos, contagiados pela vivacidade dos arranjos do hit do samba-rock dos anos 90 do Grupo Molejo.
A música “Siriri [Citação Siriri-Sirirá]” fechou o show com uma explosão rítmica e cheia de energia, antes do bis. A canção trouxe uma fusão vibrante de ritmos tradicionais brasileiros, inspirada na dança e música do siriri, típica da cultura popular do Centro-Oeste do Brasil. Zé Manoel e sua banda deram uma roupagem contemporânea à faixa, com percussões pulsantes e arranjos ricos que envolveram o público em uma atmosfera festiva e de celebração. A citação de “Siriri-Sirirá” elevou ainda mais o momento, conectando tradição e modernidade em um final apoteótico, deixando a plateia pronta para o bis com os corações acelerados e sorrisos no rosto.
O Bis: Um Ritual de Despedida e Agradecimento
O bis foi um verdadeiro ritual de despedida, começando com a poderosa repetição de “Iyá Mesan”, carregada de espiritualidade e energia ancestral. O público, que já estava de pé, recebeu “Adupé Obaluaê” com uma emoção visível. A canção final foi uma celebração espiritual, e quando as últimas notas ecoaram no ar, a plateia respondeu com aplausos efusivos e emocionados.
Casas de arte e cultura como o SESC São Paulo desempenham um papel fundamental ao pautarem artistas da grandeza de Zé Manoel em seus palcos, democratizando o acesso a uma música que ao mesmo tempo que é popular, ela é sofisticada, rica em ancestralidade e inovação. Ao proporcionar espaços inclusivos e acessíveis, o SESC conecta a obra de artistas como Zé a um público diverso, promovendo encontros entre a arte e a comunidade que talvez não tivessem essa oportunidade em outros contextos. Essas iniciativas não apenas fortalecem a cena cultural, mas também ampliam o alcance de trabalhos que dialogam com questões profundas da nossa identidade, como as de Zé Manoel, ao mesmo tempo que celebram a pluralidade da música brasileira.
A turnê Coral de Zé Manoel é uma verdadeira celebração coletiva da música, sustentada por uma banda de talentos excepcionais que elevam cada momento do show a um patamar de excelência. Yuri Queiroga na guitarra e Felipe Salvego no baixo trazem um equilíbrio de sutileza e potência, enquanto Alexandre Rodrigues (Copinha) e Larissa Oliveira, nos sopros, tecem harmonias vibrantes e profundas dando um espetáculo à parte. Na percussão e backing vocal, as indeléveis Victória dos Santos e Aworonke Lima adicionam texturas rítmicas e vocais que ampliam a sonoridade afro-brasileira do repertório. O espetacular Thiaguinho Silva, na bateria, mantém a pulsação precisa que guia a alma do espetáculo. A técnica de som de monitor, Allyne Cassini Santiago, ao lado do roadie Matheus Ramos e do técnico de som P.A., Passarinho, completam uma equipe afinada, que faz da experiência sonora um mergulho imersivo e inesquecível. A produção local impecável de Izabela Bueno e a assessoria de imprensa de Paulo Moura garantem que tudo funcione nos bastidores com a mesma harmonia vista no palco.
A estreia de Coral foi um espetáculo inesquecível. Cada canção, cada acorde e cada luz foram cuidadosamente pensados para criar uma experiência imersiva. Zé Manoel e sua banda proporcionaram uma noite mágica, onde a ancestralidade, o amor e a musicalidade se entrelaçaram em um só corpo. Um show que reverberará no coração de quem esteve presente, como um verdadeiro coral de afetos e memórias.
Repertório do Show Coral – Zé Manoel
- Golden
- Canção de Amor Para Johnny Alf
- Iyá Mesan
- Menina Preta de Cocar
- Malaika
- Coral
- Above the Sky
- História Antiga
- Notre Histoire medley Escuta Beatriz Nascimento
- Pra Iluminar o Rolê
- Não Negue Ternura
- Canção e Silêncio medley Bye Bye Tristeza
- Caçamba
- Siriri [Citação Siriri-Sirirá]
BIS
- Iyá Mesan
- Adupé Obaluaê