“Pra Sempre Paquitas: É Tão Bom?”| MEU OLHAR

A Verdade por Trás do Sonho Dourado das Telinhas e o Peso do Silêncio: Como Racismo, Gordofobia e Controle dos Corpos Femininos Marcaram uma Geração de Meninas na TV”

Por tOn Miranda

“É tão bom, bom, bom, bom…” iniciava os versos de Michael Sullivan e Paulo Massadas, num dos grandes hits que marcaram todas as gerações de uma dos cargos mais sonhados e cobiçados pelas meninas que viveram nos anos 80 e 90 e foram criados em frente a TV assistindo os programas da Xuxa, desde a extinta TV Manchete no Clube da Criança, até seu reinado absoluto na Rede Globo através dos programas que eram sucesso de audiência nas manhãs e alguns nas tardes da vênus platinada carioca: Xou da Xuxa, Xuxa Park, Planeta Xuxa, e tantos outros. Mas será que “Foi tão Bom” assim mesmo?  “Pra Sempre Paquitas, série documental recém-lançada no Globoplay, convida o público a revisitar um dos maiores fenômenos da televisão brasileira com olhos críticos e sensíveis. O programa, que por décadas fascinou crianças e adolescentes, escondia, por trás do brilho, um universo onde sonhos e expectativas eram constantemente esmagados pela imposição de padrões inalcançáveis. Nos anos 80, 90 e início dos 2000, as Paquitas – assistentes de palco da apresentadora Xuxa – eram figuras aspiracionais para milhões de meninas. No entanto, o documentário revela a dolorosa realidade vivida por essas jovens, que, quando não estavam na frente das câmeras, eram submetidas a um controle rígido e abusivo, afetando profundamente suas infâncias e adolescências.

Por trás da aura de sucesso e encanto, a série documental revela uma realidade dura vivida por meninas que, ainda em processo de formação pessoal e emocional, foram submetidas a pressões extremas, padrões inatingíveis e, muitas vezes, abusos invisíveis aos olhos do público. Essas jovens, muitas delas crianças e pré-adolescentes, foram lançadas em um mundo em que suas aparências, comportamentos e emoções eram rigorosamente controlados, transformando o que parecia ser um sonho em um campo minado de expectativas irreais e frustrações dolorosas.

A pergunta “É tão bom?” ecoa ao longo do documentário, à medida que somos confrontados com os relatos dessas mulheres, que hoje revisitam suas experiências com coragem e franqueza. Durante anos, o imaginário popular foi alimentado pela perfeição estética e pela ideia de que ser Paquita era o ápice da realização juvenil. No entanto, o documentário expõe o preço alto pago por essas meninas para se manterem dentro dos padrões estabelecidos pela mídia da época – padrões esses que reforçavam a hegemonia de um corpo branco, magro e disciplinado, em total conformidade com a estética eurocentrada.

Essas meninas, muitas delas ainda pré-adolescentes, entraram no mundo do entretenimento carregando sonhos ingênuos, moldados por uma era de encantamento televisivo. O que Pra Sempre Paquitas expõe de forma comovente é que, ao ingressarem nesse universo, foram obrigadas a se adaptar a uma série de regras severas que transformaram suas vidas em um ciclo de pressão estética, competitividade e sofrimento psicológico. Em vez de vivenciar uma infância e adolescência saudáveis, essas jovens enfrentaram cobranças extremas para se manter dentro de um padrão eurocêntrico de beleza, com dietas rigorosas e medidas corporais constantemente monitoradas.

Um dos aspectos mais impactantes da série é a forma como ela aborda a falta de representatividade racial nas Paquitas. O racismo, ainda velado naquela época, era implícito nas escolhas de casting. Nenhuma das meninas que integraram o grupo refletia a diversidade racial do Brasil. Ao optar por um elenco majoritariamente branco, a produção reforçava uma visão de mundo excludente e elitista. Milhares de meninas negras que assistiam ao programa nunca se viram representadas naquelas que eram as “meninas dos sonhos” da televisão. E isso foi, sem dúvida, uma violência simbólica com profundas implicações para a autoestima de toda uma geração.

A gordofobia, outro tema tratado de forma contundente, também dominava os bastidores do programa. As Paquitas eram vigiadas de perto e punidas caso seus corpos não se alinhassem ao padrão magérrimo estabelecido pela mídia e pela direção. Histórias de bulimia, distúrbios alimentares e regimes severos ilustram como essas meninas, ainda em desenvolvimento físico e emocional, foram levadas a buscar um corpo ideal que, muitas vezes, colocava suas vidas em risco. E tudo isso ocorria em silêncio, sob o olhar rigoroso de Marlene Mattos, a diretora e empresária cuja ausência na série documental é notável, mas cuja sombra permanece presente nas memórias dolorosas de cada uma das Paquitas.

Marlene Mattos, que desempenhou um papel crucial na carreira de Xuxa e na construção do fenômeno Paquitas, é retratada pelas antigas assistentes de palco como uma figura de controle absoluto. Seu poder autoritário transformou a dinâmica entre as meninas em uma competição constante. Sob sua gestão, a sororidade, que poderia ter unido aquelas jovens em torno de seus sonhos compartilhados, foi substituída por rivalidades e disputas, gerando um ambiente de desgaste e violência emocional e psicológico. Era como se, para sobreviver naquele mundo, fosse preciso se conformar ou ser descartada.

O culto à estética eurocentrada – com corpos brancos, cabelos lisos e loiros e magreza extrema – também ditava quem poderia ou não fazer parte desse seleto grupo. Essas imposições reforçaram estereótipos e padrões de beleza irreais, que ainda ressoam hoje, em uma sociedade que luta para se libertar da supremacia estética branca. Muitas das meninas que cresceram assistindo às Paquitas carregam até hoje as marcas de uma época em que a beleza e o valor pessoal estavam diretamente ligados ao quanto se aproximavam desse padrão inatingível.

Outro ponto que merece destaque é o reconhecimento dos próprios erros por parte de Xuxa, que, ao longo do documentário, admite ter sido omissa diante de muitas situações abusivas vividas pelas Paquitas. Ainda que sua imagem pública tenha sido a de uma figura materna e protetora, Xuxa, à época, não se posicionou contra a exploração e as imposições físicas e psicológicas que suas assistentes sofriam… muitos dos casos e detalhes do que aconteceu com suas assistentes de palco, ela só soube anos mais tarde. Essa autocrítica, embora tardia, é um passo importante para a reconciliação com as verdades que foram silenciadas por tanto tempo.

Ao falar abertamente sobre racismo, gordofobia, competição feminina e padrões estéticos cruéis, Pra Sempre Paquitas não apenas revisita a história de um dos maiores símbolos televisivos de uma geração, mas também lança luz sobre as cicatrizes profundas que a indústria do entretenimento pode causar em crianças e adolescentes que crescem sob seus holofotes. O documentário nos desafia a questionar como a mídia molda nossas percepções de beleza, sucesso e valor pessoal, e nos lembra da importância de não romantizar experiências que, para muitas, foram repletas de dor e opressão.

A escolha artística e estética da diretora Ana Paula Guimarães, a eterna paquita Catuxa (Catu), foi um dos maiores acertos de Pra Sempre Paquitas. Ao optar por uma narrativa cronológica, ela guia o espectador por uma jornada linear que respeita a evolução natural das histórias dessas mulheres, desde o brilho inicial até o peso das descobertas e traumas vividos. Juntamente com a idealizadora Tatiana Maranhão (ex-paquita da primeira geração e hoje assessora de Xuxa), Catu construiu um roteiro que não apenas apresenta os fatos com clareza, mas também respeita o tempo emocional necessário para que cada história seja contada. Essa estrutura faz com que as revelações e os depoimentos ganhem força ao longo dos 5 episódios, criando uma conexão profunda entre o espectador e as experiências das ex-paquitas, muitas vezes já conhecidas superficialmente, mas nunca tão bem exploradas.

Um dos grandes méritos da série é o uso cuidadoso de cartas, fitas K7, diários e outros documentos da época, que adicionam uma camada de autenticidade e intimidade ao projeto. Esses materiais não são apenas acessórios visuais, mas ferramentas que dão voz e corpo às memórias contadas em primeira pessoa. A exposição dessas lembranças físicas ao longo da narrativa transporta o espectador diretamente para os anos 80, 90 e 2000, permitindo que ele vivencie, junto com as ex-paquitas, as emoções daquele período. Esse recurso reforça a veracidade dos depoimentos e nos aproxima das dores e alegrias que elas enfrentaram, tornando o documentário mais que uma simples exposição de fatos – um mergulho profundo nas vivências de quem, pela primeira vez, tem a chance de contar suas histórias com total honestidade e transparência.

No final, a pergunta persiste: “É tão bom?” O que parecia ser um sonho dourado, para muitas, foi um pesadelo que deixou marcas indeléveis. A série é um alerta poderoso sobre os perigos da glorificação de um modelo único de beleza e sucesso, e um lembrete de que, por trás das câmeras, as histórias são muito mais complexas e dolorosas do que o que é mostrado na tela.

Essa revisão crítica é necessária para que possamos, como sociedade, refletir sobre os modelos que escolhemos seguir e sobre o impacto devastador que padrões irreais de perfeição podem ter em jovens em desenvolvimento. Hoje, mais do que nunca, é essencial valorizar a diversidade, a autenticidade e o bem-estar emocional de meninas e mulheres, evitando repetir os erros do passado que transformaram sonhos infantis em pesadelos de controle e sofrimento.

Serviço

PRA SEMPRE PAQUITAS

Ano: 2024

Distribuição: Globoplay

Idealização: Ana Paula Guimarães e Tatiana Maranhão

Direção Artística: Ana Paula Guimarães

Direção: Ivo Filho

Roteiro: Paulo Mário Martins

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