A Paz segundo Salgado – Crônica sobre uma partida, uma canção e o que ainda precisamos ver | CRÔNICA

Sebastião Salgado | FOTO: divulgação

Por tOn Miranda 

Na manhã de 23 de maio de 2025, o mundo ficou um pouco mais opaco. Morreu Sebastião Salgado, fotógrafo das dores, dos deslocamentos e também da beleza que resiste. Aos 81 anos, ele partiu como quem já havia dito tudo, mas deixou para nós a incumbência de continuar enxergando.

Salgado não apenas fotografava: ele testemunhava. Com sua lente em preto e branco, deu rosto à fome, à fuga, à floresta, à fé. O que ele viu no Sahel, nas minas de Serra Pelada, nos campos de refugiados da África, nos povos da Amazônia, nenhum de nós pode mais alegar ignorância. Era como se cada imagem dissesse: “olhe de novo, olhe com coragem”.

O fotógrafo e documentarista Sebastião Salgado | FOTO: divulgação

No mesmo dia da sua partida, o Brasil ouvia, nas plataformas digitais, um lançamento quase profético: a gravação ao vivo de “A Paz” (Gilberto Gil e João Donato), na voz luminosa de Marisa Monte, durante a turnê Tempo Rei, ao lado do próprio Gil. A coincidência entre o adeus do homem que denunciou guerras e a estreia dessa canção que pede serenidade ao mundo não passou despercebida.

“A paz invadiu o meu coração / De repente, me encheu de paz / Como se o vento de um tufão / Arrancasse meus pés do chão…”

Essa letra, cantada em uníssono por Gil e Marisa, soa como um mantra que contradiz — ou talvez complemente — a crueza das imagens de Salgado. Se ele nos mostrou a ferida, essa canção nos sussurra o curativo. Se ele nos ensinou que a dor é universal, a música nos lembra que a esperança também pode ser.

Mas que paz é essa que Gil e Donato compuseram? Não é a paz da inércia, nem a do silêncio imposto. É a paz como respiro, como utopia que se constrói — e que Salgado perseguia entre as frestas do mundo real. Ele sabia que a paz não é um estado, mas um esforço constante: em cada projeto de reflorestamento no Instituto Terra, em cada denúncia humanitária que publicou.

Gilberto Gil e Marisa Monte no show “Tempo Rei” de Gilberto Gil | FOTO: divulgação

Num tempo onde as imagens se tornam virais e se dissolvem com a mesma rapidez, Salgado escolheu a lentidão da câmera analógica. Ele queria que víssemos. Não apenas olhássemos, mas víssemos. Como quem ouve “A Paz” e entende que a melodia só se sustenta porque existe um caos que a antecede.

Hoje, o Brasil acordou em luto. Mas não é um luto escuro — é cinza em gradações salgadas, como as fotos dele. Um luto que também carrega luz. Porque se há algo que Salgado nos ensinou, é que mesmo nas piores sombras, há humanidade. E se há humanidade, há luta. E se há luta, ainda pode haver paz.

Paz que agora talvez lhe pertença, Sebastião. Obrigado por nos fazer ver. E que essa paz que invadiu o seu coração, invada também os nossos olhos.

Sebastião Salgado | FOTO: divulgação

Ouça aqui a música A Paz de Gilberto Gil e João Donato na gravação ao vivo de Marisa Monte e Gilberto Gil durante a última turnê de Gil chamada Tempo Rei

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