“70 ANOS ESTA NOITE”: UMA ELEIÇÃO NEM UM POUCO AFETIVA DA MEMÓRIA DA TELENOVELA BRASILEIRA

A história eleita não é, necessariamente, a história vivida. É recente a noção de que a história social nos foi contada com base em uma eleição de fatos. Quando crianças acreditávamos piamente na história narrada nos livros e trazida à sala de aula pelo professor, autoridade e representante máximo do conhecimento diante da experiência da infância. Hoje sabemos que, diante de qualquer narrativa, é preciso que façamos, no mínimo, algumas perguntas-chave: Quem fala? O que fala? Por que fala? Onde fala? Qualquer estudante de Comunicação compreende a importância de analisarmos as camadas menos visíveis de qualquer discurso, principalmente dos discursos provenientes dos meios de comunicação de massa.

Cena de “70 Anos Esta Noite” – Foto: Globo/Paulo Belote

Foi ao ar ontem, pela Rede Globo de Televisão um programa especial em comemoração aos 70 anos da telenovela brasileira. Sabe-se que a telenovela é o maior e mais promissor produto de entretenimento produzido pela televisão no Brasil. Exportada para o mundo inteiro, as nossas novelas falam muitas línguas e alcançam, com o mesmo encanto, culturas tão diversas e realidades tão diferentes das nossas.

Se as novelas nasceram em Cuba, soubemos absorver o formato e criar algo tão genuinamente nosso que é quase impossível falarmos sobre o tema sem discorrermos sobre os nossos artistas, os nossos autores, os nossos diretores e a nossa história.

Cena de “Sua Vida me Pertence” com Vida Alves e Walter Forster

A primeira telenovela brasileira surgiu um ano após a chegada da televisão no Brasil, produzida pela TV Tupi de São Paulo, em 1951. A obra, escrita por Walter Foster, era “Sua Vida Me Pertence”, estrelada por Lima Duarte, Vida Alves, Dionísio Azevedo e pelo próprio autor, Walter Foster.

Este novo formato de produto de entretenimento nasceu e se fez ao vivo porque data de 1965 – ou seja, 14 anos depois – a criação do videoteipe, sistema que possibilitou a gravação de conteúdo audiovisual, revolucionando a história da televisão brasileira.

Foram muitos os profissionais que tiveram suas histórias misturadas com a história da televisão e da telenovela brasileira. Ela foi feita por muitas mãos, enormes e infindáveis talentos, muito suor e trabalho. A produção de uma telenovela envolve mais de uma centena de pessoas trabalhando incessantemente em torno da obra para que possamos tê-la no ar no dia e no horário marcados. E a nossa vida – a vida do brasileiro – sempre esteve mediada por esta presença nas salas das famílias em uma relação tão íntima que cria, ainda hoje, a sensação de proximidade entre público e artistas. Somos todos “amigos”, imaginamos a intimidade e cuidamos da vida de nossos atores.

Cassiano Gabus Mendes

70 anos das telenovelas brasileiras são 70 anos de história social de um Brasil moderno e contemporâneo. Viva! Há que se comemorar estas mais de duas centenas de obras que compuseram o imaginário do brasileiro no decorrer dos séculos XX e XXI.

A obra “70 Anos Esta Noite” tem direção de Henrique Sauer e roteiro de Bia Braune e Celso Taddei, com supervisão de George Moura. Mas durante toda a exibição do especial apenas uma pergunta “martelava” na minha cabeça: O QUE SILENCIAM?

Cena de “70 Anos Esta Noite” – Foto: Globo/João Cotta

O conteúdo apresentado me pareceu mais uma eleição narrativa que pretendia o enaltecimento da presença feminina na construção do gênero do que, necessariamente, uma proposta de visita histórica. Uma narrativa que pretende falar sobre os 70 anos das novelas não pode, JAMAIS, ignorar os autores, os diretores precursores, as outras emissoras (afinal o gênero não “nasceu” na Rede Globo) e nem deve se propor a eleger os sujeitos que representam as categorias criadas para a apresentação da trama narrada em primeira pessoa (“eu sou a telenovela”, diz a voz de Jéssica Ellen).

Onde está Cassiano Gabus Mendes, figura fundamental na história da telenovela brasileira? Entre os galãs, onde está José Mayer, um dos maiores galãs da história moderna da televisão? Ou não é sobre “história” que este programa falava? Fiquei com a sensação de que “70 Anos Esta Noite” não “fala” sobre a história da telenovela, mas “usa” esta história para contar uma outra história: a narrativa feminina (e feminista) sobre a telenovela brasileira. Importante? Pode ser que seja, mas é bom que tenhamos em mente que talento não escolhe gênero.

José Mayer e Betty Faria como Osnar e Tieta na obra “Tieta” de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares

Quando não vi a presença do ator José Mayer entre os galãs senti mais uma vez a eleição dos fatos (sejamos sinceras: depois dele, foram várias as tentativas, mas nenhum outro ocupou este espaço com tanta propriedade). Vale dizer que se as relações estão estremecidas como todos sabem, a narrativa histórica fala por sua presença nas obras. Até porque, se as novelas fazem 70 anos, é certo que em 37 deles, tivemos a presença de Mayer em cena nas mais diversas novelas dos mais diversos autores. O ator trabalhou em obras icônicas de Manoel Carlos, Aguinaldo Silva, Ivani Ribeiro, Cassiano Gabus Mendes, Silvio de Abreu, Gloria Perez, Gilberto Braga, Walther Negrão, Dias Gomes e Maria Adelaide Amaral – aliás, onde está Manoel Carlos na história da teledramaturgia? Como foi possível esquecê-lo? Interessante também analisar que se há na narrativa – que pretende ser histórica – um claro “esquecimento” da presença de José Mayer entre os galãs, é curioso perceber que, quando a pauta é a da audiência, são as novelas que o trazem no elenco, que ocupam as grades de reprises da emissora. Nos últimos anos tivemos: Páginas da Vida, Império, Mulheres Apaixonadas, A Gata Comeu, Fina Estampa, Laços de Família, A Indomada, Meu bem meu mal, Fera Radical, Selva de Pedra, entre outras.

Mayer é a cara da telenovela brasileira, como são Tony Ramos e Antonio Fagundes, atores de uma mesma geração e que estão presentes na narrativa do especial “70 Anos Esta Noite”. As perguntas que “martelam” a minha cabeça neste momento são QUEM CALA? O QUE CALA? POR QUE CALA? ONDE CALA?

Se a proposta era contar a história das telenovelas, marquemos a presença dos sujeitos que fizeram a história.

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