JACINTA: UM GRITO CONTRA O APAGAMENTO HISTÓRICO

Espetáculo resgata a memória de Jacinta Maria de Santana e denuncia a violência racial e de gênero no Brasil em temporada carioca

A atriz Gislaine Nascimento que dá vida a Jacinta no palco do SESC Copacabana | FOTO: Bob Sousa / divulgação

Por tOn Miranda

O que significa ter sua história apagada? O que acontece quando corpos negros são tratados como objetos de estudo, aéreos, invisíveis? Essas perguntas ecoam em “Jacinta – Você Só Morre Quando Dizem Seu Nome Pela Última Vez” , espetáculo da Cia do Pássaro – Voo e Teatro que estreia sua temporada carioca no SESC Copacabana de 13 de março a 6 de abril . A peça, escrita e dirigida por Dawton Abranches , reconstrói a chocante trajetória de Jacinta Maria de Santana , uma mulher negra cujo corpo embalsamado foi exposto por quase 30 anos na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo.

Praticamente esquecida até 2021, quando a historiadora Suzane Jardim redescobriu seu caso em um jornal de 1929, Jacinta morreu após passar mal nas ruas da capital paulista. Encaminhada à Santa Casa, foi entregue ao professor Amâncio de Carvalho, da USP, que usou seu corpo para experimentos de embalsamamento. Assim, Jacinta foi transformada em um objeto, um espetáculo mórbido dentro da universidade, sendo usada até mesmo em trotes estudantis. Enquanto Amâncio teve o seu nome eternizado numa rua da Vila Mariana, Jacinta encontrou no esquecimento, sem dignidade nem reconhecimento. O espetáculo surge como um gesto reparador, trazendo sua história de volta à cena e garantindo que seu nome jamais seja dito pela última vez.

A atriz Gislaine Nascimento e o ator Alessandro Marba em cena de Jacinta que estreia dia 13 de março temporada carioca no SESC Copacabana | FOTO: Bob Sousa / divulgação

Afrofuturismo, resgate histórico e a luta contra o racismo estrutural

O espetáculo não apenas denuncia a brutalidade histórica da escravização e da eugenia no Brasil, mas também propõe um exercício de imaginação radical: como seria um mundo em que Jacinta pudesse renascer? Inspirada nos primórdios do Afrofuturismo – movimento artístico que projeta futuros possíveis para pessoas negras –, uma montagem criada um espaço onde Jacinta pode existir de outra forma, onde sua humanidade é respeitada, onde sua história não termina na violência.

A dramaturgia de Dawton Abranches se apoia em referências teóricas fundamentais para entender o racismo estrutural no Brasil, como “O Pacto da Branquitude” , de Cida Bento , “Performances do Tempo Espiralar” , de Leda Maria Martins , e “Tornar-se Negro” , de Neusa Santos Souza . Ao trazer essas bases para a cena, a peça não apenas resgatada Jacinta, mas também levanta um espelho para o Brasil contemporâneo, onde a desumanização de corpos negros segue presente nas instituições de ensino, na política e no sistema judiciário.

O espetáculo faz parte do projeto “Trilogia do Resgate” , uma iniciativa da Cia do Pássaro que busca dar visibilidade a figuras negras apagadas pela historiografia oficial. O primeiro ato da trilogia, “Baquaqua – Documento Dramático Extraordinário” , estreou em 2016 e trouxe a história de Mahommah Baquaqua , africano escravizado no século XIX que conseguiu escapar e deixou um dos raros relatos escritos de sua experiência. Agora, com “Jacinta” , a companhia continua seu trabalho de enfrentamento ao racismo por meio do teatro.

A força da música, do corpo e da cena

Com interpretações poderosas de Gislaine Nascimento e Alessandro Marba , “Jacinta” dá vida ao que uma história tentou enterrar. A montagem também conta com a presença da musicista Camila Silva , que executa ao vivo a trilha sonora no cavaquinho e na cuíca, evocando o universo do samba. Essa escolha não é por acaso: o samba, como expressão cultural de resistência negra, atua como um fio condutor que conecta o passado ao presente, transformando-o em potência, apagamento em memória viva.

A encenação aposta em um teatro ritualístico, onde corpo, voz e música se entrelaçam para construir um espaço-tempo onde Jacinta não apenas existe, mas ressignifica sua existência. Não se trata apenas de contar sua história, mas de criar um outro destino para ela – um destino onde sua voz ecoa, onde seu nome é lembrado, onde sua humanidade é restaurada.

Cena de Jacinta – Você Só Morre Quando Dizem Seu Nome Pela Última Vez, texto e direção de Dawton Abranches – Cia do Pássaro Voo e Teatro | FOTO: Bob Sousa / divulgação

Um espetáculo necessário e urgente

Mais do que um espetáculo, “Jacinta” é um chamado à reflexão e à ação. O Brasil ainda convive com práticas de exclusão e desumanização da população negra, e histórias como a de Jacinta são lembretes dolorosos de que a luta por memória e justiça precisa continuar.

Ao trazer essa história ao palco, a Cia do Pássaro não apenas denuncia as violências do passado, mas desafia o público a pensar sobre os mecanismos que perpetuam essas violências no presente. Como sociedade, ainda temos uma dívida histórica com Jacinta e tantas outras pessoas negras cujas histórias foram negadas.

No teatro, seu nome está aqui. E enquanto estiver aqui, Jacinta viverá.

SERVIÇO

“Jacinta – Você Só Morre Quando Dizem Seu Nome Pela Última Vez”

📅 Temporada: 13 de março a 6 de abril de 2025
📍 Local: SESC Copacabana – Multiuso
Horário: Quinta a domingo, às 19h
💰 Ingressos: R$ 10 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
📌 Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
📞 Informações: (21) 3180-5226
🎟️ Bilheteria: Terça a sexta, das 9h às 20h; Sábados, domingos e feriados, das 14h às 20h.
🔞 Classificação: 18 anos

Cartaz do espetáculo | FOTO: Bob Sousa / divulgação

Deixe um comentário: