Um olhar particular, mas atento aos sinais, para música brasileira produzida nesse ano de tantos desafios
Por tOn Miranda
A metáfora que em 2020 entramos num grande deserto e que desde então estamos vivendo os versos do maluco beleza Raul Seixas quando ele escreveu em 1977 O Dia Em Que A Terra Parou, caem como uma luva pra todo esse cenário pandêmico que nós brasileiros (desde março de 2020) e todo o mundo (um pouco antes de março) estamos vivenciando. Como todo deserto, o oásis é aquele contato com o belo para um respiro, para um refrigério, para um refúgio. A Arte, em todo esse tempo em que a pandemia tem imposto o distanciamento e o isolamento social (mesmo alguns insistindo em não cumprir as normas da OMS), tem desenvolvido esse papel, mais do que nunca, em nossas vidas e a Música, talvez seja a linguagem da Arte mais universal e acessível.
Eu quis nesses primeiros dias de 2021 olhar pra essa produção musical, que não parou em 2020, para enaltecer os artistas e as boas coisas que brilharam aos meus olhos e que certamente em 2021 vão continuar resplandecendo para a nossa sorte! Foram lives, lançamentos de singles, álbuns, videoclipes, documentários e muito mais sobre o universo da Música em 2020.
LIVES
As lives foram a realidade intangível presente no nosso cotidiano nesses meses. A descoberta ou aprofundamento do ambiente digital nesses tempos foi fundamental para a criação desse oásis criativo. As lives que fizeram minha cabeça foram:
TERESA CRISTINA
A rainha das lives ocupou um espaço de encontro e simplicidade que todo brasileiro que se permitiu pelo menos uma vez de se presentear nesses encontros diários, conseguiu sentir a vibe que só a música consegue emanar e unir diante de uma plateia. Foram noites e noites de muitas homenagens, choros, risos, protestos e encontros ímpares regados de muitas caras e bocas e coxinhas, que a anfitriã Teresa Cristina presenteou o seu público. Suas redes sociais cresceram e ela ajudou a colocar luz tanto para jovens e novos artistas, como resgatar um repertório afetivo que muitas vezes o Brasil insiste em abandonar no passado, mas que dialogam conosco até hoje.
Teresa Cristina, a dona do Samba, mostrou-se também conhecedora e fã de diversos outros ritmos populares e de sucessos e lados Bs que fizeram outras décadas no cancioneiro brasileiro como o rock Brasil, o forró, a MPB, e tantos outros como os sambas antigos, os temas de novelas e os novos compositores.
Destaco a live em homenagem a diva Marisa Monte na véspera do seu aniversário (01 de julho), no dia 30 de junho, onde convidados como Caetano Veloso, Carlinhos Brown e a própria Marisa Monte coloriram a noite que bateu fácil a marca de mais de 10mil espectadores no ao vivo. Marisa cantarolou sucessos como Speak Low, Na Estrada e Velha Infância.
Clique aqui para ver o primeiro vídeo da Live em homenagem a Marisa Monte
Clique aqui para ver o segundo vídeo da Live em homenagem a Marisa Monte
CARLINHOS BROWN
O técnico do The Voice Brasil (adulto e kids), Carlinhos Brown, presenteou o seu público com algumas lives, mas uma delas foi muito especial: a live UMBALISTA, realizada no dia 13 de junho, onde ele reuniu seus sucessos e alguns outros em parceria com seus irmãos artísticos, os Tribalistas – Arnaldo Antunes e Marisa Monte, numa apresentação carregada de emoção e pedidos de famosos. Além dos dois Tribalistas, Brown atendeu ainda pedidos de Chico Buarque e Glória Estefan. Uma live intimista direto de Salvador, Bahia, produzida por Ivanna Souto.
Destaque para o registro ao vivo de Zanza, canção do Brown presente no seu primeiro álbum, o indelével Alfagamabetizado, de 1996.
Clique aqui pra assistir a live UMBALISTA de Carlinhos Brown.
CAETANO VELOSO
Caetano Veloso protagonizou uma deliciosa novelinha digital criada espontaneamente por sua esposa, a produtora e empresária Paula Lavigne nas redes sociais do casal: o público encheu as caixas de mensagens pedindo uma live do fundador do Tropicalismo, até que os pedidos transformaram o desejo de ver Caetano na enigmática #LiveALenda.
A live foi tão desejada e aguardada, que Caetano se rendeu aos pedidos e transformou o encontro virtual numa celebração aos 78 anos que ele completou no dia 07/08 cercado da família: os filhos Moreno, Zeca e Tom Veloso formaram o quarteto mágico do show Ofertório e acompanharam o pai nesse show doméstico em forma de presente a nação, que nessa altura encarou o espetáculo com um só coração.
A transmissão da live ficou por conta do Globoplay que abriu o sinal para não assinantes terem acesso a essa preciosidade em forma de música.
Em Dezembro, Caetano voltou com uma linda Live de Natal pra fechar o ano com música de ouro.
Assista aqui a Live do Caetano de Natal
SINGLES e VIDEOCLIPES
Diversos artistas aproveitaram o isolamento pra colocar na roda suas produções e experimentos musicais. Eu ouvi e assisti diversos singles que se transformaram em significativos videoclipes e lyric vídeos de artistas novos e renomados no meu Spotify e YouTube que eu gostaria aqui de destacar alguns:
MAJUR – Andarilho
A cantora revelada para o grande público através de Caetano Veloso e na sequência por Emicida, trouxe no mês de Agosto/2020 o single da canção autoral Andarilho, produzido por Majur e o leãozinho Dadi Carvalho, trouxe um clipe dirigido por Marina Benzaquem, que traz nos tons rosáceos e anis o convite que o ser poético da canção faz para o seu ser amado adentrar o seu mundo, um mundo que ela é capaz de até tomar um café (mesmo não gostando da bebida tão popular no Brasil), tudo para ter ao seu lado o alvo do seu amor.
LINIKER – Psiu
No finalzinho de outubro fomos contemplados com o Psiu da Liniker, canção autoral que ganhou um belíssimo videoclipe concebido por Liniker, Mirella Façanha (uma das atrizes do espetáculo Isto É Um Negro?) e Feliz Trovoada. A direção e roteiro são de Mirella e de Trovoada.
A canção tenta chamar a atenção poeticamente do ser amado que se despi de todo medo e surpreende com a exposição dos seus sentimentos quando versa “Pra quem não sabia contar gotas, cê aprendeu a nadar”.
O elemento fogo rege todo o videoclipe, mas a música esquenta quando o ser amado chama a atenção do ser poético nos versos:
Borrifou um segredo pra fazer a lua
Temperou com calma teu desassossego
Empanou com areia tua calma santa
Salvou um beijo
Chorou na despedida
Mas gozaram chamas
Amanheceu à guarda de esperar o sono
Desesperou de medo quando ficou tarde
Chamou minha atenção
Clique aqui para assistir ao videoclipe Psiu de Liniker
TILA TAVARES – Estelar
Tila Tavares é uma nova artista que vem desbravando seu caminho na música e que eu mostrei um pouquinho quando a convidei pra participar da minha coluna PERFIL aqui no portal do Canal Diversão & Arte.
Depois de Água Quadrada, em novembro, ela veio com mais uma canção autoral chamada Estelar, com produção musical do Renato Gama e do Kauê Gama que trouxeram pra ambiência da canção o micróbio do samba (como versaria Adriana Calcanhoto) casando com a voz suave e sussurrada de Tila. Se em Água Quadrada o tema central era sobre Saudade e Solidão, em Estelar, Tila Tavares fala e invoca o universo feminino. A canção ganhou um lindo e singelo lyric vídeo concebido por Artur Gobbi.
Assista aqui o lyric vídeo de Estelar com Tila Tavares.
DIEGO ANTUNES – Vamos Deslogar?
Outro que está engatinhando na carreira musical, mas chegou com tudo é o paulistano Diego Antunes. Em 2019 ele lançou a carreira num show autoral chamado Vamos Deslogar. Em maio de 2020 ele trouxe a público um lyric vídeo super divertido com a música homônima concebido por Gabriel Rodrigues.
Segundo Diego, a composição é fruto de flertes e namoricos com um crush na internet e ela fala justamente disso, de um convite para uma pausa nas relações frias e não aprofundadas das redes sociais, é um chamado pra pro offline e analógico (prática que só nos caberá depois da pandemia, não é mesmo?).
ZÉ MANOEL – Adupé Obaluaê
O clipe oficial da canção que finaliza o álbum DO MEU CORAÇÃO NÚ de Zé Manoel, a música Adupé Obaluaê (que numa tradução livre do yorubá significa Adupé = Obrigado e Obaluaê = é o orixá de cura e regeneração) ganhou clipe com concepção, direção e performance de Gil Alves. Aliás, Gil Alves é também o responsável pela direção de arte de todo o álbum (que recentemente ganhou versão em CD físico e que brevemente ganhará versão em vinil).
Zé nos disse que a canção nasceu de um sonho que ele teve com a melodia e com as palavras Adupé e Obaluaê. O clipe é uma dança ancestral performada por Gil Alves que invoca cura para as mazelas e temas levantados por todo o álbum. Ele foi lançado uma semana antes anunciando o álbum que já é um sucesso de crítica e de público desde Outubro de 2020.
Clique aqui pra assistir ao clipe Adupé Obaluaê de Zé Manoel
EMICIDA – É Tudo Pra Ontem (participação de Gilberto Gil)
É Tudo Pra Ontem vem cravejar com diamante a joia do documentário AmarElo lançado na Netflix. Uma canção que resume toda mensagem do documentário e do álbum com a luxuosa participação de Gilberto Gil. É isso. Não tem nada do que eu possa falar que a mensagem de AmarElo já não diga com tanta eloquência.
Clique aqui pra assistir ao clipe É Tudo Pra Ontem com Emicida e Gilberto Gil
ÁLBUNS
A produção musical trabalhou muito em 2020 e trouxe frutos saborosos para os apreciadores da boa música brasileira. Com o terreno fértil de temas e com o povo com mais tempo para degustar a música através das plataformas de áudio streaming tivemos uma temporada farta de novidades. Destaco aqui alguns que povoaram os meus ouvidos e que se você ainda não conhece, precisa se permitir:
ZÉ MANOEL – Do Meu Coração Nú
Um dos grandes presentes que 2020 nos entregou foi a audição do novo álbum do cantor, compositor e pianista pernambucano Zé Manoel, o disco Do Meu Coração Nú. Zé se juntou com o produtor musical Luisão Pereira e teceram uma obra prima fonográfica que desnuda com poesia os temas e demandas que atravessam o corpo e existência preta não só do Zé, mas de toda uma geração que tem se levantado diariamente para combater o racismo, a solidão do povo preto, as mazelas sociais e o preconceito contra a fé ancestral.
O álbum é um mergulho certeiro do artista que busca nas suas referências e ancestralidade uma luz para a cura de tantas feridas expostas. A música aqui serve de encontro, mas também de bálsamo para as chagas sociais e existenciais.
FABIANA COZZA – Dos Santos
Falando em ancestralidade, Fabiana Cozza colocou nas plataformas de áudio streaming o aguardado álbum Dos Santos, que é uma reconexão com uma fé de matriz afro-brasileira.
A base do álbum é a percussão que ecoa como um ato de resistência e resiliência nessa Brasil ainda racista. Um som que chega majestoso aos ouvidos e que reverencia a tradição, o canto e o samba.
Fabiana é uma das grandes cantoras pretas que nosso país produziu nos últimos tempos. Sua trajetória se curva e louva aos que vieram antes dela e isso fica muito evidente no álbum produzido por Fi Maróstica com composições de Tiganá Santana, Luiz Antônio Simas, Moyseis Marques, Carlos Rennó, Pedro Luis, Douglas Germano, Roque Ferreira, Gisele De Santi, Vidal Assis, Ana Costa, Zélia Duncan, Luciana Rabello, Paulo César Pinheiro, Everson Pessoa, Nei Lopes, Sérgio Pererê, Sandra Simões, Alfredo del Penho, Ceumar e a própria Fabiana Cozza em meio a alguns Domínios Públicos.
ADRIANA CALCANHOTTO – Só
Adriana Calcanhotto talvez tenha sido uma das primeiras cantoras e compositoras a produzir durante a pandemia um álbum que refletisse e traduzisse esse sentimento quarentenado que todos ainda estamos vivendo através das condições impostas pela pandemia.
O álbum Só chegou em maio, com 09 canções inéditas com composições autorais que versavam o nosso isolamento e distanciamento social, nossa procura e relação com o jornalismo diário, nossas revoltas, nosso home office, nosso desemprego, nossa valorização pelo toque, pelo abraço, pelo beijo.
MARISA MONTE – Cinephonia
Não, ainda não é o tão aguardado álbum de inéditas de Marisa Monte. Porém, depois que Marisa assinou novo contrato com a Sony Music, essa ansiedade por essa espera só aumentou e todo e qualquer mínimo movimento que a cantora fez em 2020 foi amplamente observado e analisado por sua legião de fãs.
Em junho Marisa lançou nas plataformas de áudio streaming o projeto que ela batizou de Cinephonia, que segundo ela, reúne nas plataformas de áudio streaming fonogramas que outrora só tinha disponível nos seus registros audiovisuais dos seus DVDs/ Home Vídeos. Os fãs acharam que ela finalmente ia abrir o baú de novidades, pois Marisa é conhecida por registrar toda sua carreira, conselho que ela segue arrisca do pai, o ex-diretor da Portela, o engenheiro Carlos Monte. Porém, a única novidade real que o projeto trouxe à tona foi o registro da canção Acontecimento, composição do Hyldon que estava nos tapes da gravação do show do Memórias (2001) – Ao Vivo.
Ao todo foram 31 músicas resgatadas pelo projeto divido em três álbuns: Memórias (2001) – Ao Vivo, álbum que reuniu o repertório do show (não todo) do disco Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, Hotel Tapes (1996) – Ao Vivo, encontro musical que Marisa fez pra celebrar a histórica turnê do disco Verde, Anil, Amarelo, Cor de Rosa e Carvão, o disco da turnê recebeu o nome de Barulhinho Bom – Uma Viagem Musical e Princípios (1989-1992) – Ao Vivo que juntou os fonogramas dos DVDs MM e Mais (não todos).
A sorte é que 2021 está prometendo um disco de inéditas de Marisa Monte. Oremos!
FRAN e CHICO CHICO – Onde?
Dizem que o número sete é o número da perfeição e são sete músicas que marcam o encontro artístico de Chico Chico e Fran e que certamente ao ouvir essa joia, você também vai ficar atordoado e ficará perdido se perguntando “Onde?”
Como diz o ditado popular: “O fruto nunca cai longe da árvore” e as árvores responsáveis por trazer ao mundo esses dois belos frutos são Cássia Eller (mãe de Chico Chico) e Preta Gil (mãe de Francisco Gil, o Fran, neto de Gilberto Gil), artistas com grande representatividade no nosso cenário musical.
O encontro musical de Fran e Chico Chico, revela uma amizade e um gosto apurado na escolha do repertório do disco que contou com composições de Edson Gomes, Sergio Sampaio, Itamar Assumpção, Luis Melodia, Gilberto Gil e uma canção autoral composta pela dupla chamada Ninguém. O disco que teve produção musical de Ivan Cavazza chegou no finalzinho de 2020, em dezembro, mas na primeira audição se tornou dono do meu coração. Aliás, se eu não fosse esse curioso pra saber quem compôs cada canção, facilmente poderia afirmar que ambos são compositores de todas elas, pois os dois tomam de tal forma a canção para si, que assim como Cássia Eller, Elis Regina e tantos outros, se tornam coautores das canções que interpretam.
MÚSICAS E AFINS
Algumas obras que falam de música me chamaram atenção em 2020 e passo um highlight aqui pra vocês:
EMICIDA – AmarElo – É Tudo Pra Ontem (documentário)
A Netflix com a Lab Fantasma colocaram no ar o documentário que é uma verdadeira aula de pretitude. Oops, eu acho que já falei isso aqui quando estreou esse maravilhoso e imperdível documentário do grande Emicida.
Esse aulão tem como pano de fundo a música, o rap, a cultura hip-hop, o samba, os heróis pretos da História, as referências ancestrais, as referências contemporâneas, a luta antirracista, a representatividade preta, a ocupação preta nos espaços de poder, tudo isso mergulhado no processo criativo de gravação do álbum AmarElo e na gravação antológica do Emicida no Theatro Municipal de São Paulo costurado com encontros como o que ele teve com Fernanda Montenegro, Fabiana Cozza, Wilson das Neves, Zeca Pagodinho, Pabblo Vittar, Majur e tantos outros.
CHICO KERTÉSZ – Axé – Canto Do Povo De Um Lugar (documentário)
Esse documentário, apesar de ser de 2017, ele foi colocado no catálogo da Netflix em 2020 e muita gente tomou conhecimento desse belíssimo filme de Chico Kertész que procura investigar a origem desse gênero musical baiano que conquistou o Brasil e o mundo nos anos 90 e que até hoje mexe com a cabeça e as cadeiras de quem o ouve. Sim, estou falando do Axé Music, termo que nasceu pejorativo, mas que no filme fica bem explanado como nasceu e como foi incorporado pelos artistas aso longo da sua história.
O filme é recheado das estrelas do estado brasileiro disfarçado de gravador e traz depoimentos importantes como os de Luiz Caldas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Margareth Menezes, Saulo Fernandes e tantos e tantos outros que ajudaram a construir o tum-tá irresistível do Axé Music.
Assista aqui o trailer do filme Axé – Canto do Povo de um Lugar, documentário de Chico Kertész