Carmen Miranda foi e ainda é | CRÔNICA

Num dia malfadado, a luz do sol já não possuía o mesmo brilho, ou talvez, fosse ela. O que houvera? A artista que deixara seu país do coração, emergido em tanto orgulho, havia sido tomada pela angústia. Por entre sorrisos projetados e risadas fictícias, a mulher ali presente exalava consigo um ar que diferia de tudo que jamais havia sido exposto pela mesma. O cansaço. O abatimento. A dor.

“Coração
Governador da embarcação do amor
Coração
Meu companheiro na alegria e na dor
A felicidade procurada corre
E a esperança é sempre a última que morre”

“Coração”, canção interpretada por Carmen Miranda, composta Sylvio Rodrigues Silva.

Contraditoriamente, fora a esperança quem dava seus últimos suspiros, em sua mente a palavra “continue” era imposta como um disco arranhado. Porém, foi seu coração quem acabou por vencer quando, numa tentativa de recuperação, teve de retornar ao país tropical que tanto amara, juntando-se a sua mãe e irmãos.

Tornava-se doloroso vê-la tão sugada por aquilo que sempre à causou felicidade. Nossa querida pequena notável, que sempre almejara o melhor, ainda causava em nossos batimentos palpitações. Carmen estava tão perto ao mesmo tempo que tão longe.

Nas cabeças alheias, a memória inquietante do dia em que Carmen chegara ao Estados Unidos pela primeira vez, ungida em alegria e estagnada em ansiedade, ainda no início de seus trinta anos, ela caminhava em direção aos repórteres e fotógrafos presentes no desembarque.

Não que Maria do Carmo – seu nome de batizado – já não fosse influente em território nacional antes de ser descoberta por um americano. Ela iniciara sua carreira musical ainda jovem, desde quando cantava a fim de atrair a clientela local em seu primeiro emprego, até o momento que chegou a gravar seu primeiro single “Taí”, dez anos antes de pisar em Nova York.

Um impacto exuberante na sociedade

Percorrendo seu caminho reluzente, Carmen conquistou tudo aquilo que alguém poderia desejar, sua fama havia se firmado para além da música. Os palcos e telas de cinema hollywoodianos haviam sido preenchidos com o sorriso eminente da que – agora chamada de “The Brazilian Bombshell” – despertara a paixão de diversos admiradores falantes da língua inglesa. Chegando a ser a mulher mais bem paga do Estados Unidos durante a década de 40.

A questão é, o que tornava a moça tão influente e importante? Talvez já tenha ouvido falar sobre fatos como a “política da boa vizinhança”, adotada por Getúlio Vargas, na qual o ditador haveria usado a cantora como principal método de apaziguar e criar, brevemente, uma parceria entre Brasil e Estados Unidos. Todavia, a representação que Carmen obtinha era muito maior do que qualquer pretexto político. Seu estilo era único, especialmente pelo uso frequente de turbantes coloridos e recheados de frutas – motivo pelo qual ela veio ser nomeada mais tarde como “The Lady in the Tutti-Frutti Hat” – na qual a mesma buscava representar o estado Bahia, local do qual citava frequentemente em suas apresentações. Suas roupas chamativas em cores berrantes causavam euforia à cada vez que seus “pézinhos” pisavam no palco.

Sua beleza também era nitidamente notável, e pode se dizer única, o que causava alvoroço entre os homens, deixando-os completamente caídos de amor. Sua imagem logo fora completamente associada à graciosidade da mulher brasileira, fato que até hoje é lembrado por quem vem de fora. Além disto, sua personalidade resiliente e bem-humorada, garantia que qualquer pessoa que cruzasse seu caminho fosse instantaneamente marcado profundamente por sua gentileza em mistura com o “jeitinho brasileiro” indescritível. Quanto mais o tempo passava, mais fundo ela se firmava na história. Carmen Miranda era sim, uma jóia rara.

“Jóia que se perde no mar
Só se encontra no fundo
Samba mocidade
Sambando se goza
Nesse mundo”

Adeus Batucada”, canção interpretada por Carmen e composta por Synval Silva.

Mulher ou máquina?

Para uma visão exterior, a ideia de que a atriz e cantora vivera seus dias mergulhada em prazeres e felicidade constante era clara. Entretanto, com o passar do tempo, Carmen demonstrava mais fragilidade em manter seu entusiasmo impenetrável. Algo estava acontecendo com a doce mulher, mas o que?

Apesar de muito aclamada por onde quer que passasse, os olhares brilhantes da plateia focavam na moça de “roupa colorida e chapéu tropical”, não que esta não fosse a Maria do Carmo, porém existira alguém além. Dentro daquele traje excessivamente carnavalesco, houvera uma mulher, com amores perdidos, coração frágil, defeitos e qualidades que qualquer outro indivíduo compreenderia. Isto se, algum deles tentasse.

A carga horária excessiva de apresentações e participações em shows diários tomava cada vez mais conta de sua agenda, chegando aos dias que Carmen necessitara auto medicar-se a fim de suportar o “pico” de seu dia-a-dia. Através das performances diurnas que perduravam sem pausa até as madrugadas agitadas de Los Angeles – seu lar definitivo – a saúde, física e mental da cantora dava seus primeiros sinais de quem estava estacionando. Por entre o casamento conturbado e a robotização por parte dos grandes produtores de Hollywood, teve então de retornar ao Brasil em busca de uma melhora eficaz na saúde.

“O tic, tic, tic-tac do meu coração
Marca o compasso do meu grande amor
Na alegria bate muito forte
E na tristeza bate fraco porque sente dor;
O tic, tic, tic-tac do meu coração
Marca o compasso de um atroz viver
É o relógio de uma existência
E pouco a pouco vai morrendo de tanto sofrer”

Tic-tac do meu coração” canção de Carmen Miranda, composta por Silva/Vermelho.

Suas letras deixavam transparente aquilo que ninguém via, sua vida pessoal. O relógio de Carmen estava chegando à meia-noite. Foi no ano de 1955 quando ela voltou para os palcos, trazendo consigo aquele sorriso imensurável, sua voz belíssima e seu tão desaparecido brilho. Reluzente como ouro, foi como a Embaixatriz do Samba voltou à Los Angeles. Fortemente preparada para seguir em frente.

Em sua última performance, no Jimmy Durante Show, um dia antes de sua morte, o seu esgotamento era facilmente recobrido pelo encanto que a mesma causava nos olhos ansiosos da plateia em vê-la. Durante a gravação, os sinais de que algo estava fora do habitual passavam diversas vezes despercebidos. Sem hesitação, a artista concluiu sua participação, se despedindo do público por entre beijos e passos de dança. Aquele havia sido o último registro de Carmen

Ela

Nos aproximamos dos 70 anos após sua ida de corpo físico, contudo, seu espírito permanece no brilho dos holofotes. O que logo, a transforma num mito. Seria ela uma das maiores artistas que já pisaram entre nós?

Carmen fora uma das maiores guerreiras que o Brasil já tinha presenciado. Ela era nosso orgulho. Era uma inspiração de perseverança, força e graça. Se nos anos atuais pode parecer inimaginável que um artista brasileiro entre em ascensão internacionalmente, através de músicas cantadas em nossa língua nativa e em ritmo de samba, provavelmente eu diria que sim, que é quase impossível. Mas existiu alguém, e seu nome brilha até hoje na calçada da fama. Carmen Miranda é a lenda mais importante do folclore brasileiro, e uma das estrelas mais brilhante da América.

3 thoughts on “Carmen Miranda foi e ainda é | CRÔNICA

Deixe um comentário: