TORTO ARADO – O retrato mais fiel do sertão brasileiro

O Sertão Brasileiro sob a ótica habilidosa de Torto Arado

Por Thiago Nunes

Torto Arado ganhou a simpatia da crítica e o carinho do público instantaneamente. O romance do geógrafo e escritor baiano Itamar Vieira Junior já é tratado como um clássico. Somente no ano de 2020 foi vencedor de dois prêmios importantes: OCEANOS e JABUTI.

É curioso esse tratamento por parte das pessoas e por isso mesmo decidi conferir de perto.

No início da história, que se passa lá no serão baiano, conhecemos as duas irmãs: Bibiana e Belonísia, que com a curiosidade inerente à toda criança decidem mexer na velha mala da avó Donana e descobrir o que tanto ela esconde. Quando a velha sai, é a chance para cumprirem sua malineza. Eis que elas encontram uma faca afiada, onde podiam até mesmo ver seus reflexos estampados. O fascínio com o objeto misterioso é tanto que elas acabam pondo a faca na boca.

Uma das irmãs faz um ferimento na língua, enquanto a outra a corta fora, pra valer. Esse acontecimento muda pra sempre a vida da avó Donana que aos poucos vai perdendo sua lucidez. Os pais das garotas, Salustiana e Zeca Chapéu Grande também têm suas vidas mudadas. Suas duas filhas mais velhas, desse dia em diante passaram a ser uma só. Elas se conectam uma a outra, de forma que o que uma delas não pode falar, a outra transmite com suas palavras.

Tudo isso acontece em um Brasil do passado. Onde ainda não havia TV, tampouco internet. Torto Arado retrata a população da Fazenda Água Negra, que chegou ao local para trabalhar e com isso ganharam o direito de construir uma pequena casinha de barro na propriedade, onde poderiam morar com seus filhos.

O pai de Bibiana e Belonísia, Zeca Chapéu Grande é uma espécie de líder daquele povoado. Todo mundo o respeita, sobretudo pelo seu dom de cura. O homem conhece a fundo todas as ervas, rezas e remédios… Isso fazia com que todos em volta o respeitassem e acatassem suas decisões.

A vida em Água Negra não é nada fácil. É preciso trabalhar de sol a sol, plantando para que os donos da fazenda possam colher e obter os lucros.

O pagamento? Um pedaço de terra onde podem fazer uma casa de barro – nada de alvenaria – e onde podem plantar para o consumo próprio. Mas como em um grande território feudal, também a grande parte da produção para o consumo era levada. Geralmente os frutos e verduras mais bonitos e vistosos deixavam a fazenda rumo ao bolso dos patrões.

Em todo esse contexto, Itamar Vieira Junior toca em uma ferida aberta, que poucas pessoas tiveram a coragem de tocar até os dias de hoje. A vida dos sertanejos, sua lida diária na roça em troca de um lugar para dormir e plantar o próprio alimento.

Com a seca? Também precisavam se virar, com farinha, beiju e cortado de palma (uma espécie de planta que serve de alimento para o gado).

A vida dura no sertão já foi retratada por Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos, mas Itamar vai mais a fundo. Ele entra no dia a dia de figuras que lutam pela sobrevivência diariamente, numa espécie de escravidão onde todo o trabalho corporal só serve para que o povo tenha o básico do básico do básico.

Torto Arado é um livro de linguagem simples, fácil de ser entendida. Como uma conversa do dia a dia. Mas isso não é nenhum demérito, eu diria até que é um ponto positivo em favor da obra.

Em tempos onde a sociedade discute a necessidade dos clássicos no currículo escolar, ter uma obra que bebe dessas fontes é uma forte aliada na introdução ao conhecimento da vida sertaneja, do verdadeiro Brasil que está escondido, ainda nos dias de hoje.

A fictícia Fazenda Água Negra fica na Chapada Diamantina, no estado da Bahia. Mas basta procurar para encontrar problemas com a seca, a falta de informação e de acesso a insumos básicos em diversas áreas rurais do nosso país. Inclusive, em muitos casos encontramos casos de trabalho escravo.

Toda essa história é narrada em três partes. A primeira por Bibiana, a segunda por Belonísia e a terceira por Santa Rita Pescadeira, uma das entidades do jarê (religião de matiz africana) e que marca presença nas festas através de Dona Miúda.

Todo o trabalho acerca da religião africana é feito com cuidado e respeito e não podia ser diferente. Itamar além de escritor e geógrafo é também antropólogo. Descendente de negros vindos de Serra da Leoa e de indígenas Tupinambás, ele criou em suas personagens características fieis à realidade.

Tamanho é o envolvimento com aquela história que é possível sentir-se catando umbu no pé, tomando banho de rio, arando um terreno para plantar, brincando nas festas do Jarê… Torto Arado é um retrato da relação homem-natureza. O mato, a chuva, o sol e principalmente a terra fazem parte de suas identidades, de quem eles verdadeiramente são.

Partindo um pouco para o lado pessoal, li Torto Arado em janeiro agora, no sertão da Bahia. Meus ancestrais todos vieram do sertão baiano, em lugares muito parecidos com a fazenda Água Negra.

A Fazenda Lameiro, onde nasceu meu pai ou a Fazenda Varginha/Barreira onde nasceu minha mãe faz parte da minha vida, de certa forma. Não foi lá que nasci, mas é lá que me sinto pertencente, conectado. Conectado com a terra, com a natureza, com Deus e comigo mesmo. São meus lugares preferidos no mundo, que recarregam minhas forças.

Ter essa obra em mãos enquanto podia ver na prática um pouco de tudo que o livro tratava deu à experiência um sabor diferente. Um sabor doce, marcante.

Para quem quer conhecer um pouco melhor a história do Brasil, Torto Arado é uma leitura mais do que essencial.

Sobre o autor

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, e autor de DIAS e A ORAÇÃO DO CARRASCO. É autor de Torto Arado, publicado pela Todavia em 2019, e vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos de 2020.

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