A Reinvenção da Roda | AFINIDADES

Por Albano Sales

Num programa que aborda novidades do panorama cultural de um canal de TV “cult”, um jovem compositor é entrevistado. Seu discurso se apresenta como socialmente e esteticamente avançado e, tanto quanto sua idade cronológica transparecem sua formação universitária e suas influências musicais. Sua fala impressiona e boa parte do tempo do programa é dedicada a esta. Somente nos poucos minutos restantes do bloco é que este apresenta uma obra sua, acompanhado da banda. A expectativa criada é grande, mas logo nos primeiros compassos surge novamente a bem conhecida frustração da demanda por qualidade e inventividade. Nada além de um lugar comum, insosso, frustrante, que não logrou inovar, que não causa arrepios, inquietação…

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Lembro de uma vez em minha juventude, durante a ditadura, em que num grupo de amigos jogávamos cartas na alta madrugada, no ócio das férias escolares. O velho rádio FM começou a tocar uma canção que nos impactou de tal forma que nos tirou o fôlego: por volta das quatro, as cartas caíram sobre a mesa, o silêncio se impôs, a atenção era total, respeitosa. Ao final da até então desconhecida canção, o locutor anunciou: “com Elis Regina, de Ivan Lins e Vítor Martins, Cartomante”.

Não era só uma canção, era uma porrada certeira na nossa percepção, tinha compromisso, engajamento, mas antes e acima de tudo tinha ousadia lírica e a inovação musical e estética que acompanham toda obra revolucionária genuína, seja sinfonia ou canção, poema ou romance épico. Não fosse isso seria obra medíocre, panfletária, utilidade a serviço de algum interesse ou poder. A obra de arte genuína é incorruptível, invencível. E não raro cobra seu alto custo em dedicação, dor, suor e lágrimas. …

Assim ao discurso de layout acadêmico que criou expectativas, segue-se uma obra musical que decepciona logo nos primeiros acordes. Como é possível não se decepcionar com a imediata constatação de mediocridade, ao ser atingido em cheio pela imaturidade musical e poética que não correspondem ao discurso? Porque se não há ao menos uma dentre estas características a seguir: consistência artística, autenticidade, indignação, explosão afetiva, reflexão profunda, enfim, se não transparece humanidade, como pode ser algo relevante? Como pode existir uma genuína obra de arte sem a pulsão criativa, sem os riscos da busca musical e poética? Muito provavelmente os criadores de tais obras carecem de vivência, experiência real, lastro cultural, autoconhecimento, lucidez e humildade. Mas enquanto houver o contexto amplo e o consenso poderoso que os legitima e protege, nada mudará em suas consciências.

Aos ouvidos de quem tem experiência e lastro, percepção treinada e bagagem, é quase imediata a constatação da falta de ousadia, conhecimento, talento, musculatura e, pior de tudo, detecta-se a conformidade aos parâmetros ditados pelos modelos vigentes de uma indústria cultural à qual interessa somente o veículo e não o conteúdo. E que distorceu os setores culturais tidos outrora como superiores, transformando estes em segmentos de mercado ordinários, com seu disfarce “cult”, dirigidos a uma parcela da população que acredita ter cultura, quando tem, no muito, prateleiras de conservas culturais.

Pobre nova geração que não aprendeu o conhecimento verdadeiro, que perdeu de saída pela impossibilidade de não ter tido vivência dos acontecimentos históricos. Mas que desperdiçou a salvadora segunda chance pela nefasta interrupção da transmissão do lastro cultural, negada e bloqueada pela indústria cultural e por politicas diversas. E afinal, pobre esta porque lhe chegou somente uma sombra do conhecimento, filtrado por lentes forjadas em interesses ideológicos, políticos ou mercadológicos. Aprendida na academia e sem comprovação na vida real. “Enriquecida” na profusão de informação sem profundidade a sociedade informatizada.

Pobre geração que, imatura emocionalmente, criada em redomas, discute sem saber do que fala, e pior: não vê que não sabe. Pobre geração que insiste no caminho da ignorância arrogante sustentada por uma titulação duvidosa e por tratados sofismáticos que tentam lhe atribuir legitimidade.

Não era discurso, era luta real
Não era receio, mau presságio
Era medo, terror
Não era sonho, era desespero,
Não era planejado, era a vida acontecendo,
Improvisada a cada segundo.
Era verdadeiro.

Albano Sales

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